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Foto do escritorIasmine Pereira

Edifício Argentina

Essa é uma das poucas vezes que não identifico o que acontece. Paralisada. Logo eu, tão ativa, me sinto um móvel. Imóvel. Devia correr, descer as escadas, buscar ajuda. Desde que o alarme tocou não consegui sair da cadeira. As únicas partes que funcionam são meus dedos. Pondo em palavras um ardor nunca antes sentido. Faz calor. O ar condicionado parou. A luz também. No computador tem bateria e o telefone roteia o 4G. Os minutos se estendem numa imensidão sonora de crepidos desesperadores.


Você deveria estar aqui. Um cliente te tirou de perto. Há algo que nos separa mais do que reuniões e áreas, compromisso e lazer. Algo que você sempre fez questão de honrar. Édipo. Algo que atrapalha nosso destino. Parecia eterno até o despertador tocar. Hora de ir pra casa. A casa que nunca era a minha. Nem um dia se tornará.


Essa não é uma história de contos de fadas. Apesar de que a morte irá nos separar. Em breve. Talvez, quando você leia essas palavras – quando elas cheguem até você – eu já tenha dado o último respiro. Meus colegas ainda não aceitaram essa opção. Desesperam-se entre baias e escadas de incêndio. Correm buscando alternativas. Um passou pela minha janela. Veio do terraço. Eu sigo digitando.


É só o que eu consigo fazer. Mas nesse momento me pergunto o porquê. Por que é você? Por que um dia foi? É porque você brincou comigo. As pessoas subestimam a brincadeira. As pessoas entendem que brincar é jogar. As pessoas jogam. Você brinca. Eu brinco. Nós brincamos. Juntos. Um juntos que jamais se realizará.


Construção era a palavra que usávamos para refletir sobre nosso romance. E uma construção em chamas acabará com tudo. Os treinamentos de incêndio – quando realizávamos a fantasia de transar na sala de reuniões – não serviram de nada. Os brigadistas apenas apitam. Não sabem usar o extintor. Se estivesse aqui, de mãos dadas, faríamos piadas com o caos.


Aliás, isso é algo que fazemos bem: rir da vida. Das catástrofes que nos separavam, dos traumas infantis que nos impediam de vivenciar a relação sem poréns, de tanta infelicidade que cercava a saúde de sua mãe – até disso a gente ria. A gente ria da impossibilidade de estarmos juntos. Um riso impaciente, desejoso. Mas era hora de voltar para a casa porque “mamãe precisa de ajuda”. Será que precisava de tanto? Nunca questionei. Sempre respeitei. Manda um beijo. Eu dizia todas as vezes. Queria mandar cicuta. Aí seria demais.


Quando a morte se aproxima a gente perde o filtro. Isso que dizem dos velhinhos, né? Eu vou morrer, Edu. Eu vou morrer. Morrer. Você já sabia?


Você vai ser daqueles casos de quem sobrevive porque perdeu o voo que caiu. Todos morrem. Menos você que dormiu demais, que teve um cliente fora, que faltou – como você se ausenta das coisas -, algo do acaso, nada antes planejado. Inveja. A empresa vai morrer e você… o único em um cliente hoje. Você sobrevive. Você é a exceção, Edu! Na minha vida.


Faz ainda mais calor. Lembra das vezes que te falei sobre o fogo – o nosso -, de como lareiras me hipnotizam? De quando divagamos sobre quem inventou a batata frita – quem pensou que batata e óleo combinavam perfeitamente? Nunca procuramos no Google. Agora não há mais tempo.


Tá pegando fogo no Argentina, Edu. Em Botafogo. De frente para o Pão de Açúcar. De minha sala de diretora, cheia de vidros, acompanho o desespero atrás e observo a vista. Pão de Açúcar! Não consigo me mover. Eu vou morrer.


Vai saber o que será da minha não-vida sem você, mas que a sua… ahh, que a sua seja o que você quiser.


PS: Aproveita, pega a gata lá em casa e deixa com a sua mãe. A gente é parecida. Elas vão se dar bem.




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